Artigo publicado pelo Dr. Nilsomaro de Souza Rodrigues na Revista de Direito n. 25 (julho de 2012) da DPERJ.

    RESUMO: Cuida o presente artigo analisar, diante das novas regras processuais vigentes e das normas constitucionais, a possibilidade de levar alguém a julgamento popular – Tribunal do Júri – quando, por ocasião da decisão interlocutória (pronúncia), tem-se que a prova produzida nos autos deixa dúvidas – em especial quanto à autoria ou à participação do acusado.

    ABSTRACT: The present article takes care of analyzing, considering the new procedural and constitutional laws, the possibility of taking someone to a popular judgment when, by the occasion of the interlocutory decision (pronunciation), there´s an evidence produced that leaves doubts, particularly when it comes to authorship or involvement of the accused.

    PALAVRAS CHAVES: PRONÚNCIA – INDÍCIOS SUFICIENTES – IN DUBIO PRO SOCIETATE – CIDADANIA.

    À GUISA DE INTRODUÇÃO

    Não é novidade que o procedimento adotado pelo Código de Ritos para os crimes de competência do Tribunal do Júri é escalonado, tendo duas fases distintas. A primeira, judicium accusatonis, que a rigor não passa de mero juízo de admissibilidade da acusação, inicia-se com o recebimento da denúncia e termina com o trânsito em julgado da decisão interlocutória de pronúncia ou impronúncia, absolvição sumária ou desclassificação. Somente no caso de pronúncia, há uma segunda fase, judicium causae, em que se submete o acusado ao julgamento por Juízes leigos – Tribunal do júri –, competência estabelecida constitucionalmente.

    É naquela fase e ao final que tem o juiz togado talvez sua única participação decisória, que poderá ser de pronúncia, de impronúncia, de absolvição sumária ou desclassificatória como já dito, exceto é claro, as de liberdade ou prisão.

    Recentemente, mais precisamente em 10.06.2008, entrou em vigência a lei 11.689, que, dentre várias modificações no procedimento do Júri, inovou quanto à decisão de pronúncia ou impronúncia do réu. Embora tal mudança tenha sido sucinta no número de termos acrescidos, certamente teve extrema relevância modificativa.

    É certo ainda que, como constava na norma anterior pertinente, o legislador fez questão de manter na legislação em vigência dispositivo expresso chancelando que a decisão de impronúncia não faz coisa julgada material. Dessa maneira, deixou claro que o réu impronunciado poderá ser objeto de pronunciamento futuro, desde que não extinta a punibilidade.

    LEGISLAÇÃO ANTERIOR, SUA MODIFICAÇÃO E A PRONÚNCIA DO ACUSADO

    Em sua redação anterior, o artigo 408 do CPP tratava dos requisitos exigíveis para a pronúncia do réu, assim como o artigo 409 cuidava da impronúncia, sendo certo que ambos levavam à mesma conclusão. No artigo 408, convencido da existência do crime – materialidade –, e presentes indícios de que o réu fosse o seu autor – autoria ou participação –, deveria ser o réu pronunciado. Já no artigo 409, caso não se convencesse da existência do crime ou de indício suficiente de que fosse o réu seu autor, o juiz julgaria improcedente a denúncia ou a queixa.

    Numa interpretação rápida e objetiva da mens legis anterior, tem-se que, presentes materialidade e indícios de autoria, pronunciava-se o réu. Ausente materialidade, ou não havendo indício de autoria ou participação, impronunciava-se o réu.

    É certo que a presença de meros indícios, muitas das vezes presentes só nas peças informativas colhidas na fase inquisitorial, levava o acusado a ser pronunciado e julgado pelo Júri.

    Ao elaborar a nova norma, o legislador introduziu no antigo artigo que cuidava da pronuncia do réu o adjetivo “suficiente”. Logo, onde se exigiam somente indícios para a pronúncia do réu, passaram a ser necessários indícios suficientes de autoria ou participação.

    Não há dúvidas que a introdução do adjetivo suficiente, que, segundo o dicionário Aurélio, quer dizer “aquilo que satisfaz, que é bastante, apto ou capaz”4, não foi introduzido na legislação por mero capricho ou enfeite de redação.

    Já há alguns anos, e principalmente após a vigência da Carta de 1988 – intitulada como “cidadã” –, alguns autores vinham tentando demonstrar o equívoco que era a asserção de o juiz da pronúncia, mesmo existindo dúvida, dever sempre mandar o acusado a julgamento pelos jurados. Era a consagração e a eternização do brocardo latino “in dúbio pro societate”.

    É indiscutível que a Carta Política de 1988 trouxe e consagrou princípios, dentre os quais as garantias individuais, a serem preservados em um estado democrático de direito. E é óbvio que as leis ordinárias devem ser regidas e interpretadas a partir da lei maior.

    O julgamento pelo Júri foi estabelecido na CF como uma garantia do cidadão, e não da sociedade. Albergar o esquizofrênico brocardo “in dúbio pro societate” como norte para submeter o acusado ao julgamento pelo júri é uma afronta à Constituição. Ainda, é uma inversão do ônus da prova no processo penal, o que não é concebível.

    Pari passu, antes mesmo da edição da nova sistemática trazida pela lei 11.689/08, vinham crescendo as manifestações e decisões dos tribunais pátrios repudiando tal posicionamento.

    O inesquecível Ministro Evandro Lins e Silva, em brilhante artigo publicado pelo IBCCRIM, ao discorrer sobre o tema, sustentou, com a maestria de sempre, que não era concebível que a dúvida sobre a autoria, a “co-autoria” e a participação pudesse levar alguém ao cárcere ou à ameaça da condenação por um júri de leigos, naturalmente influenciável por pressões da opinião pública e trazendo o aval de sentença de pronúncias rotineiras. É dele ainda o ensinamento de que “(…)Quando a dúvida envolve a autoria ou a participação no crime, impera o princípio “in dubio pro reu”; se a dúvida é quanto a qualquer excludente, ou justificativa, a solução é “pro societate”.” E arremata: “O juiz lava a mão como Pilatos e entrega o acusado (que ele não condenaria) aos azares de um julgamento no júri, que não deveria ocorrer (…)”.

    Discorrendo sobre o tema, o Dr. José Roberto Antonini, argumenta que a Constituição Cidadã privilegia o interesse individual, que deve ser cuidadosamente protegido, “(…) contra a mera possibilidade de condenação injusta pelo júri, o qual não declara as suas razões, os seus motivos, ao condenar ou absolver (…)”6. Cita José Frederico Marques, o notável processualista penal, partidário até então do in dúbio pro societate, mas que, em sua obra mais recente – Estudos de Direito e Processo Penal em homenagem a Nelson Hungria –, escreve este trecho, que, se não é uma contradição ou retratação, é um valioso reconhecimento: “(…)Para a pronúncia tem de ser certa a existência do crime e provável a autoria imputada ao réu. Se apenas razoável a existência do crime, não pode haver pronúncia, e o mesmo se verifica quando tão só possível a autoria que ao denunciado é atribuída (…)”.

    Como anteriormente foi mencionado, a jurisprudência pátria já vinha se insurgindo no mesmo sentido, podendo ser destacados arestos de alguns Tribunais. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul resumiu a matéria de forma didática: “(…)Sinteticamente: quando a dúvida envolve a existência do crime ou a autoria/co-autoria/participação = pro réu; quando a dúvida envolve excludente ou justificativas penais = pro societate (…)”.

    Já não eram poucas as decisões no mesmo sentido: para que haja pronúncia é preciso que haja indícios sérios e convincentes. Vale destacar decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina decidindo igualmente, invocando, inclusive, arestos do Tribunal de Justiça de São Paulo: “(…)Não merece reparo a sentença que, em processo com falta de elementos convincentes sobre a autoria, impronuncia o réu.”

    Importante ainda destacar que o Superior Tribunal de Justiça, com maiores incidências na Sexta Turma, também já vinha se posicionando neste sentido, exigindo indícios sérios e contundentes para ensejar uma decisão de pronúncia.

    Passe-se então à análise e conclusão da(s) inovação(es) introduzida(s) no procedimento do Júri, mais precisamente no tocante a pronúncia ou impronúncia do acusado.

    Num primeiro momento, a simples leitura do atual artigo 413 do CPP, juntamente com a leitura do antigo artigo 408, faz perceber claramente que o legislador, além de impor ao sentenciante a obrigatoriedade de fundamentação, deu mais conotação ao adjetivo convencer, senão veja-se:

Art. 408 – Se o juiz se convencer da existência do crime e de indícios de que o réu seja o seu autor, pronunciá-lo-á, dando os motivos do seu convencimento. Art. 413 – O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação.

    Diante da necessidade de fundamentação e convencimento contido na norma, já se pode deduzir que, pairando dúvidas no momento da decisão, não poderá o juiz pronunciar o acusado. A conclusão é lógica, pois estar convencido é exatamente o contrário de estar em dúvida: são posicionamentos diametralmente opostos. É claro, ainda, que o convencimento do sentenciante deva ser tanto quanto à materialidade (existência do crime) como aos indícios (autoria).

    Inseriu ainda o legislador, como já dito antes, o adjetivo “suficientes”. Essa pequena-grande adição ao que continha a norma anterior foi, sem dúvidas, a materialização, através da chancela legal, da necessidade de que, no tocante à autoria, coautoria e participação, esteja presente nos autos bem mais do que meros indícios para que seja o acusado pronunciado. É necessário que sejam suficientes, o que se traduz em quantidade e qualidades aceitáveis.

    Em outro giro, mas que deverá também ser observado já na decisão de pronúncia prolatada pelo juiz togado, é que este não poderá formar seu convencimento quanto à presença dos indícios suficientes em provas colhidas no procedimento inquisitorial, ou seja, nos elementos informativos colhidos na investigação. Ocorre que a já citada reforma também inseriu como regra processual dispositivo que veda a formação da convicção do magistrado em prova produzida fora do contraditório judicial. Trata-se do artigo 155. Embora se encontre na parte geral do Código de Ritos, mais precisamente no título que trata da prova, é, sem qualquer dúvida, aplicável no procedimento especial do Júri, verbis:

Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvados as provas cautelares, não repetitíveis e antecipadas.”

    Portanto, entendemos e estamos convictos de que, com a nova redação dada aos artigos 413/414 do CPP, não mais poderá ser proferida sentença de pronunciamento do réu tendo como argumento e suporte o “in dúbio pro societate”. Deve o magistrado estar diante de uma prova produzida, repita-se, judicialmente e com indícios suficientes de autoria, que seja apta, que seja bastante, que possa realmente suportar um decreto condenatório futuro justo, sob pena de estarem estes mesmos juízes descumprindo a lei, afrontando a Constituição Federal e, sobretudo, lavando as mãos e transferindo responsabilidades.

    CONCLUSÃO

    Era, e é agora mais ainda após a nova orientação legislativa, ALÓGICO, IRRAZOÁVEL E INCONCEBÍVEL, que alguém venha ser submetido a julgamento por juízes leigos, sujeito, portanto, a toda sorte, em um processo onde os indícios não são suficientes. Ninguém é culpado mais ou menos, ou quase, ou duvidosamente. É ou não é. Não há dúvidas que a nova redação do artigo 413 do CPP tem como objetivo claro banir das decisões de pronúncia o até então consagrado “in dúbio pro societate”. A nova exigência temática de indícios suficientes não permite mais o posicionamento de Pilatos.

    Este é o sentido exato que trouxe a lei 11.869 nos artigos 413 e 414 do CPP, em face à necessária cumplicidade aos termos e fundamentos expressos na Constituição Cidadã.

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    ANTONINI, J. R. Encerramento da formação da culpa no processo penal do Júri: in Estudos de Direito e Processo Penal em Homenagem a Nélson Hungria, pág. 129, 1ª ed., Forense, 1962.

    BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Processo nº 1999 01 1 057132- Recorrente: Rodrigo de Lima Padilha e Paulo Rogério Vargas. Recorridos: a Justiça Pública e assistentes de acusação. Relator: Des. Getúlio Pinheiro. Rio Grande do Sul, 7 de junho de 2001.

    DIVERSOS. Revista dos Tribunais. Vol. 549, julho de 1981.

    FERREIRA, A. B. H. Aurélio século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 2128p.

    SILVA, E. L. Sentença de Pronúncia. IBCCRIM, v.8, n.100, mar 2001.